CASTELO NOVO
Aquele mês de Setembro estava raro … as temperaturas quase faziam esquecer as chuvas prometidas pelo borda de água … fazia calor.
A vereda que conduzia à aldeia era estreita, sinuosa … e um poco acidentada.
De sua casa ao povoado era cerca de meia hora de lenta caminhada.
Belisandra parou um pouco antes das primeiras casas … respirou fundo … sabia o que a esperava … mas necesitava de fruta, ovos e um pouco de feijão.
A merciaria ficava bem no centro da aldeia …
Voltou a respirar fundo … tinha que ser …
Ergueu bem alto a cabeza descoberta de cabelo ao vento e avançou.
A meio da primeira rua havia uma taberna. Uns homens, escutando passos, a uma hora näo habitual, sairam para confirmar quem vinha.
--- Olha! Olha! Que fazes tu por aqui?
Outro homem ao seu lado tentava que falasse mais baixo.
--- Porque tenho eu de baixar a minha voz? … Por uma bruxa?
--- António, então?! Deixa a rapariga em paz …
--- É Belisandra, a bruxa do monte.
--- A pobre moça que culpa tem? São coisas de sua mäe.
--- Quem Lisandra? Já a sua avó, Cassandra era bruxa … são todas umas bruxas.
Felizmente a rua era curta e ao final Beli cortou à direita.
Algumas mulheres estavam tomando o sol. Assim que a viram meteram-se para dentro e fecharam as janelas de madeira.
Finalmente chegou à loja.
Entrou. Dentro algumas mulheres faziam também as suas compras … ao verem-na dirijiram-se à porta.
--- Dona Elvira, voltamos logo.
--- Sim sim! De repente falta-me o ar.
Dona Elvira, dona do comercio de merciaria fez um ar de paciencia …
--- Olá Belisandra. Desculpa esta gente da aldeia.
--- Não faz mal. Já estou acostumada.
--- Então que precisas hoje?
Em pouco mais de vinte minutos tinha um saco cheio de provisões e voltava para casa.
Para não passar outra vez diante da taberna, escolheu outro caminho.
Mas essa rua levava-a pela igreja.
Duas mulheres caminhavam em sentido contrario. Pensou en dar meia volta … mas no fundo … sentiu uma raiva subir-le pelo peito … --- Que raio!!! Não era nenhuma criminosa. Não tinha porque fugir. Levantou a cabeça e seguiu.
--- É preciso ter muita lata para passar diante da casa de Deus.
--- Estou de acordo.
--- Tens que falar com o prefeito, teu marido, isto não pode acontecer.
Passou ao lado das duas mulheres ignorando por completo os comentarios …
Depressa as casas ficaram para traz.
Respirou, agora de alivio … levava viveres para uma semana … uma semana em que não tinha porque voltar ali.
Ao entrar em casa parecia que se transportava a outro mundo … um mundo de paz e harmonia.
Essa tarde, estava sentada na sua cadeira preferida, cosendo uma roupa que necesitava reparos, quando a paz da sua solidão foi repentinamente interrompida por pancadas na sua porta.
Beli esperou que batessem de novo e só entäo se levantou e abriu a porta.
Do lado de fora, uma das duas mulheres com quem se cruzara aquela manhã, ali estava, olhando em todas as direcções.
--- Posso entrar?
Depois de uns segundos olhando-a nos olhos, Belisandra deu um passo ao lado.
--- Faça o favor.
Levou a mulher até a sala e fez-lhe um gesto convidando-a a sentar-se.
--- Belisandra … primeiro quero que me prometa que não contará a ninguém que estive aqui … Deus !!! Se o meu marido descobre … que vergonha …
--- O seu marido é o perfeito, verdade?
--- Sim!
--- Vejo que a senhora me necesita.
--- Sim. … Como sabe isso?! Ainda não lhe disse ao que vinha.
--- Não quer que o seu marido saiba que veio aqui … mas vem aqui por sua causa … estou enganada?
A mulher olhava-a com os olhos muito abertos … depois baixou a cabeza …
--- Sim. É verdade …
--- Tranquila, senhora Deolinda.
--- Sabe como me chamo?
--- Sim. E digo-lhe que näo tem nada a temer. Sebastião, o seu marido não a engana.
--- Não?!!!
--- Não.
Respirou muito aliviada …
--- Mas ele precisa muito da sua atenção. Esta a passar um mau momento.
--- Obrigada, Belisandra … e perdoe-me pelo de hoje de manhã … Eu admiro-a muito, a minha mãe chegou a falar com a sua avó … e visitou a sua mãe … de facto eu estive nesta mesma sala com a minha mãe … você ainda näo tinha nascido.
--- Bem sei.
--- Mas como mulher do perfeito tenho que manter as aparencias … seria a chacota de todas as minhas amigas.
--- Não se preocupe. É um estigma de que não sou culpada … mas a que me vou habituando.
Antes de salir, Deolinda deixou um pequeno saco em cima da mesa.
Belisandra ajudava todo o mundo, não cobrava … cada pessoa dava o que queria … assim ganhava a vida …
Quando voltou a fechar a porta näo conteve um sorriso.
Seria interessante ver a cara daquela mulher quando um dia descubrisse que a amiga que a acompanhava aquela manhã havia cruzado aquela mesma porta a semana passada … e não era a única.
Tres dias depois era Domingo. Todo os habitantes da aldeia … quase todos … concentravam-se na grande igreja … era a missa mais forte da semana.
padre João fazia sempre uns sermões especiais aos domingos … fortes … emotivos …
Como sempre, o amplio atrio da templo era, depois da eucaristia, lugar de encontro semanal de amigos, companheiros ou simples conhecidos.
As crianças jogavam por entre as arvores num ambiente de pura descontracção.
O sol aberto num céu sem nuvens fazia do dia um excepcional motivo de reunião.
Seriam umas duas horas da tarde quando um dos rapazes que jogavam chamou a atenção dos mais velhos:
--- Olhem … que nuvem tão estranha …
Instintivamente, todos olharam o céu … era verdade … uma estranha nuvem vinha desde o sul …
Um “bruuuáááá” saiu da boca de todos …
As mulheres recolheram as crianças e correras pelas ruas tentando chegar a casa.
Os homens permaneceram de pé tentando identificar o que se aproximava.
Um deles finalmente gritou:
--- Gafanhotos.
Todos correram a refugiar-se na igreja. Conseguiram fechar a grande porta no preciso instante em que a praga cobria toda a aldeia.
Foram minutos de silencio no interior do templo … ninguem tinha idea do que fazer … nem como …
Quando se decidiram a sair a visão era aterradora … o que uns minutos antes era verde e luminoso, agora era cinzento e frio.
Finalmente um deles tomou a inciativa.
--- Homens de Castelo Novo, agora, mais do que nunca, temos de estar unidos.
--- Sebastiäo … homem de Deus … isto é uma maldição do Senhor … que poderemos nós fazer … pobres mortais?
--- Algo teremos que fazer …
--- Porque näo vamos falar com Belisandra?
--- A bruxa do monte?
--- Si … talvez nos possa ajudar.
--- A ver … boa gente … se sempre a criticasteis … se sempre lhe fizeis a vida negra quando ela vem fazer as sua compras … agora quereis falar com ela? Quem vos garantiza que vos recebirá?
--- Eu posso dar essa garantia?
Todos olharam para o dono daquela voz.
--- Joaquim … que dizes? Se tu sempre foste um dos mais acérrimos criticos a essa criatura …
--- Vos recordais quando o meu filho Antonio ficou muito doente o verão passado?
Todos se lembravam perfeitamente … Antonhito … tinha febras muito altas … o médico da aldeia näo sabia o que fazer …
De repente o rapazito recuperou e até à poucos minutos era um dos que brincavam no átrio.
--- Todos recordamos o que passou, Joaquim … muito embora, ainda hoje nos preguntamos como recuperou …
--- Visitamos essa mulher.
Fez-se silencio. Ninguem olhou o homem.
--- Foi Belisandra quem nos disse como fazer … fui a sua casa com a minha mulher … deu-nos umas ervas … voltamos … fizemos a infusão … o menino bebeu e … pela manhã … estava sem febre.
--- Eu tambem procurei essa mulher.
A voz vinha do outro lado do grupo.
--- Tu também, Miguel?
--- Eu não, a minha mulher … sabeis que temos 6 filhos …
--- Claro que sim.
--- Depois de nascerem as minhas cinco filhas estavamos desesperados … queriamos um rapaz … já näo sabiamos o que fazer.
--- Manuela foi a casa de Belisandra … ela nos disse o que fazer … e … a verdade … é que funcionou … meses depois nasceu Jorge.
Novo momento de silencio …
Depois Sebastião, o perfeito eleito por todos os presentes voltou a falar.
--- Muito bem. Estou de acordo. Um grupo de nós irá a casa de Belisandra.
Cerca
de duas horas depois, um grupo de quatro homens subia a vereda,
afugentando as centenas de gafanhotos que cobriam todo.
Beli
olhou-os com medo nos olhos.
---
Tranquila, senhora Belisandra … não tenha medo … não viemos
fazer-le mal … --- ela continuava parada, olhando-os … ---
necesitamos a sua ajuda.
---
Então é melhor que entrem.
Explicada
a situação, Beli olhou-os … o que via era um grupo de homens com
miedo … sem soluções …
---
Porque recorrem a mim?
---
Todos sabemos dos teus poderes … nem sempre te tratamos da melhor
maneira … mas …
---
Não é a mim que deveis recorrer … eu só sou a mão de um poder
mais alto … deveis rezar … No altar da vossa igreja esta a imagem
da senhora da Mesericordia … não é verdade?
---
Sim, é a nossa santa padroeira.
---
Pois rezai-lhe as vossas orações e amanhã, à mesma hora em que
apareceram hoje esses animais, saí em procissão por toda a aldeia …
Todos
a olharam surpreendidos …
Beli
levantou-se, sinal que a reunião tinha terminado.
A procissão foi preparada com todo o cuidado … todos colaboraram … as mulheres com as flores … os homens fazendo turnos para levar o andor da santa … as crianças com as velas …
--- Preparem-se para abrir as portas.
Batiam as duas no relógio da torre cuando a procissão começou a sair …
Todos olhavam em volta … os animais, parados … pareciam tentar compreender o que passava.
Então passou o impensavel.
A procissão ia avançando … e sorpreendentemente os gafanhotos iam caindo mortos.
Toda a tarde os fieis percorreram as ruas de Castelo Novo. Ao cair da noite … a aldeia estava limpa da praga.
O padre João, ao voltar a imagem ao seu lugar habitual no altar mor falou com todos.
--- Nossa Senhora da Misericordia livrou-nos de esta maldição. Para demonstrar-lhe a nossa gratidão, todos os anos neste mês de Setembro repetiremos esta procissão em seu louvor … e assim farão os vossos filhos … e os filhos dos vossos filhos …
Com o cuidado habitual, Beli descia a vereda … era o dia de compras … era tambem a primeira vez que baixava à aldeia depois da “invasão”.
Na primeira rua, a taberna do costume.
À sua passagem sairam alguns homens, como siempre … mas em silencio tiraram o chapeu em sinal de respeito.
Beli sorriu sorpreendida mas seguiu com o seu passo firme.
Algumas mulheres cruzaram-se com ela …
--- Bons dias Belisandra.
--- Bons dias, senhoras.
As coisas estavam, realmente, diferentes.
Esta história é conhecida por quase todos os que nasceram em Castelo Novo.
Alguns leitores, os mais atentos, se darão conta de que é a segunda historia que escrevo que descreve uma praga de gafanhotos. Isso só vem certificar que tal “invasão” existiu e que abrangeu uma vasta zona da beira interior.
Castelo Novo é uma aldeia muito bonita e bem cuidada, situada na encosta oriental da serra da Gardunha, a cerca de 650 metros de altitude.
O seu passado estende-se até aos tempos do romanos.
As ruas, traçadas segundo as curvas de nível, revelam antigos solares, paredes-meias com casas populares em pedra, pequenas varandas de madeira e restos de calçada romana.
Alguns locais säo de visita obrigatória como a Casa da Câmara, Cadeia e Pelourinho, o Chafariz da Bica, a Igreja da Misericórdia e o castelo.
À saída da aldeia, numa pequena elevação, fica o Cabeço da Forca, zona de execução de condenados, marcada por duas caveiras esculpidas na rocha.
No seculo XVII encontramos a aldeia de Castelo Novo como sede de concelho.
O concelho de Castelo Novo era constituído pelas freguesias de Lardosa, Castelo Novo, Orca, Póvoa de Atalaia, Soalheira e Zebras.
Em 1835, o concelho foi extinto e anexado ao de Alpedrinha, passando com este e seu termo, a fazer parte integrante do concelho do Fundão, a partir de 24 de Outubro de 1855.
Vos deixo algumas fotos de Castelo Novo:
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