Olhou o céu procurando o sol. Pela sua posição calculava que seriam umas quatro da tarde.
Montando Gingão, o seu cavalo preferido, João dirigia-se a galope moderado aos seus terrenos.
Tinha 45 anos e, apesar de se chamar João Micaelo, toda a cidade o conhecia por João Pisco.
O apelido tinha um motivo concreto, João era exageradamente delgado
e não se podia dizer que comesse muito à hora das refeições. Podia ser
esse o motivo.
A verdade é que já a seu defunto pai lhe chamavam André, o Pisco. O nome ficou-lhe por herança.
Era também conhecido por ser dono da “Quinta d Feiteira”, uma
amplia quinta a cerca de quilómetro e meio do centro de Castelo Branco.
Aí trabalhavam para si cerca de 10 famílias e da terra trabalhada por
todos saíam grande parte das couves, alfaces, cenouras, nabos e cebolas
que se vendiam todos os dias no Mercado central.
Todos os dias, mais ou menos à mesma hora, João passava pelos seus domínios fiscalizando os trabalhos.
Era amável com todos os seus empregados e todos o tratavam com um misto de respeito e admiração.
Pelo
caminho cruzou com vários cavaleiros espanhóis, algo a que estava
acostumado. No entanto não podia evitar recordar os discursos
inflamados de seu pai que não se acostumava à presença dos
espanhóis em praticamente todas as administrações públicas.
Quando
ele tinha uns 10 ou 12 anos, contara-lhe como muito tempo antes dele
nascer as coisas foram muito difíceis.
D.
Sebastião, um rei muito jovem desaparecera numa batalha em
Africa…não deixara descendência e a sua família por parte da mãe
era espanhola. Foi então que os nossos vizinhos ocuparam o país.
Ele
sempre vivera com aquela realidade, jamais se havia sentido ameaçado
ou prejudicado.
---
Buenas tardes señor Juan
De
tal maneira ia absorto nos seus pensamentos que nem dera conta que
passava pelo casebre de Manolo Bruxo, espanhol radicado na cidade já
há muito anos e tido como o principal vidente do local.
O
governador espanhol, diziam, visitava-o muitas vezes e esperava
sempre escutar algo a seu favor.
Soubera
por uns amigos comuns que à cerca de dois meses repetira a visita.
Manolo Bruxo disse-lhe que a sua estadia aqui seria só até finais
do ano… furioso mandou queimar-lhe a casa.
Embora
parcialmente reconstruída ainda se podiam encontrar vestígios de
queimado nas paredes.
---
Se acercan días dificiles, señor Juan.
João
imobilizou o seu cavalo.
–-
Boas tardes Manolo. Não sei a que te referes…
---
Complicaciones, señor Juan…complicaciones…
---
Está bem, Manuel. Complicações todos temos. Muito obrigado pelo
aviso. Agora tenho de ir.
Incitou
o cavalo a continuar caminho. Ainda conseguiu escutar a voz do bruxo:
---
Está usted en peligro señor Juan. Todos lo estamos…
Na
quinta estava tudo normal.
Josefa,
sua esposa, esperava-o.
---
Papáááá
Assim
que cruzou o largo portão uma pequena figura correu para ele… era
Eduardo o único filho que tinham.
Tinha
10 anos e quando não estava na escola gostava de estar na quinta.
Via-se como o atraía o campo.
Saltou
do cavalo a tempo de agarrar o pequeno no ar e dar umas quantas
voltas.
---
Como está o meu delfim?
---
Muito bem, meu pai. Tinha saudades tuas.
---Eu
também, Eduardo … eu também … Josefa, como estás?
Sua
esposa estava sentada à entrada da casa bordando um pequeno pano.
---Bem.
Quando quiseres podemos voltar a casa.
---
Está bem. Mandarei preparar o carro, deixa o cavalo descansar um
pouco.
Tiago
o capataz, seu homem de confiança na quinta acercou-se e
respeitosamente tirou o chapéu.
---
Boa tarde senhor João.
---
Olá Tiago. Como está tudo por aqui?
---
De momento bem … mas seria bom que chovesse um pouco.
---
Estamos em maio, Tiago …
Olhou
à sua volta. Dava gosto ver a Quinta da Feiteira naquela época do
ano, com tudo verde e florido.
Aquele
seria um bom ano para as laranjas, peras, pêssegos…até para a
azeitona…que bom…
---
Papá … papá … vai chover?
---
Seria muito bom, meu filho … mas não se preveem chuvas nos
próximos dias.
---
Então aquela nuvem negra não é de água?
O
rapaz apontava para o céu com o dedo e João não pode evitar olhar.
No
céu, uma estranha nuvem muito escura avançava rapidamente…
---
Por Deus Sagrado … que é isso?
A
nuvem descrevia um desenho anormal e era muito grande … mas não
parecia uma nuve comum … até porque todo o restante céu está
azul.
Parecia
também vir acompanhada de um zumbido … de repente João sentiu
perigo.
---
Rápido, para dentro de casa. – Arrastou Eduardo pela mão. ---
Zefa, sua esposa olhava-o sem compreender --- depressa, entra em
casa. Tiaaaagooo.
---
Sim patrão.
---
Não quero ver ninguém ao ar livre… todos para dentro dos
estábulos, os que não possam chegar aí que entrem em casa …
rápido …
---
Sim patrão.
Em
poucos minutos os campos ficaram desertos. Com eles, em casa,
refugiaram-se quatro ou cinco mulheres.
---
Fechem todas as janelas e portas.
---
Que passa, João…estamos todos assustados…
---
Escutai…
Agora
o zumbido era muito mais forte … fazia lembrar o som das colmeias …
Uma
das mulheres espreitou pelos vidros de uma das janelas e soltou um
grito …
Correram
todos a olhar para fora…a quinta tinha mudado de cor … do verde
que há bem pouco tempo se orgulhava João, nada restava … era todo
de um cinzento avermelhado.
---
Porque está tudo tão escuro, papá?
---
São bichos, meu filho… uma invasão de bichos…
---
São gafanhotos, senhor João --- uma das mulheres havia reconhecido
a ameaça --- centenas deles …
Os
seus olhos percorreram tudo o que poderia avistar desde dentro de
casa… a mulher tinha razão… eram milhares e milhares de
gafanhotos…tinha que saber como estavam os restantes empregados…
---
Não vais sair de aqui, pois não? --- Josefa estava quase em estado
de choque.
---
Calma … não há perigo. --- tirou a toalha que estava de decoração
em cima da mesa e enrolou-a à volta do pescoço. --- podeis sair,
mas tenham cuidado com os colarinhos largos e as mangas.
Ao
sair encontro Tiago que com o chapéu tentava, em vão, afugentar os
insetos.
---
Isso não serve de muito Tiago.
---
Senhor João…que fazemos…estão a comer toda a colheita…vai ser
uma desgraça.
---
Pois…não sei que possamos fazer…de momento vou levar a família
para a cidade…já pensaremos melhor…apronta o carro, por favor.
---
Sim senhor.
A
caminho da cidade João ia olhando todos os campos por onde
passavam…todos estavam cheio de gafanhotos…era uma praga…uma
praga bíblica…
Dois
dias depois reunia-se com outros donos de terrenos, ele próprio
tinha convocado a reunião.
No
grupo uma ideia estava tomando forma e peso…
---
Temos de queimá-los… não resistirão ao poder de fogo…
A
ideia assustava-o…como poderiam controlar os incêndios?
E
se a coisa de escapasse das mãos? Arderia toda a cidade?
---
Tem de haver outra solução…
---
Sim. Há outra solução…que chova…
---
Mas isso não está previsto…será difícil que chova nas próximas
semanas.
João
olhava as caras preocupadas de todos.
---
Sorte que não atacam as pessoas…
---
E estão em todas as partes…
---
Dizem que respeitam a igreja da ordem do Templo…
---
Como?
---
Estava conversando, ontem com uns mercadores espanhóis que passaram
aí e dizem que num diâmetro de 100 metros não há gafanhotos.
João
ficou intrigado…
Esse
mesmo dia montou Gingão e dirigiu-se ao local.
A
Igreja estava a cerca de três quilómetros da sua quinta … tinha
que ver aquilo…
Pelo
caminho via como os intrépidos animais fugiam ao passar do cavalo.
Em cerca de meia hora chegou.
Das
ruínas sobressaía uma igreja, fechada á muitos anos, sem que
ninguém soubesse do paradeiro do possuidor de tal chave.
Quando
atou o cavalo a uma árvore deu-se conta que tinham razão … um
largo verde desenhava-se no chão, a toda a volta da “capela”…
os gafanhotos respeitavam o local … mas porquê?
Caminhou
por aquele espaço vazio durante uns minutos…não havia dúvidas …
naquele círculo de cerca de 50 metros de raio … nem um gafanhoto…
Ao
regressar à cidade de novo encontrou Manolo …
---
Tinhas razão Manolo …
---
Se lo advertí … pero nunca me creeis …
João
nem parou …
O
resto da semana passou-se entre contabilizar os danos … a
informação era terrível … todas as colheitas destruídas …
todo o trabalho de quase um ano inteiro tinha desaparecido … ele
poderia sobreviver … mas muitos dos seus empregados estavam com
dificuldades.
Tentaria
ajudar como pudesse … mas os seus celeiros não durariam muito.
Duas
semanas depois nova reunião.
As
caras estavam muito abatidas … a situação mantinha-se … os
malditos gafanhotos haviam chegado para ficar para sempre, ao menos
assim parecia …
---
Confirmo que junto à igreja há um circulo em que os gafanhotos não
entram … estive aí e não consegui encontrar a razão … mas essa
é a verdade …
---
Proponho que a próxima reunião seja aí … pode ser que venham as
ideias …
---
Devo dizer que tentei queimá-los nas minhas terras num pequeno
espaço para ver qual seria a sua reação …
---
E que se passou?
---
Pois … nada … quando o fogo se apagou e a terra arrefeceu …
voltaram …
---
Então … amanhã encontramo-nos nas ruinas …
E
assim foi.
Cerca
de 30 homens ocupavam na manhã seguinte aquele círculo “mágico”.
Entre
eles estava manolho Bruxo.
---
Que faz este espanhol aqui?
Algumas
vozes começaram a murmurar pela presença daquele incómodo
personagem.
Foi
João quem acalmou os ânimos.
---
Tenham calma. Seja ou não Português ele também é um dos afectados
… temos problema muito mais importantes e graves do que discutir
pela sua presença.
Todos
concordaram.
---
Alguém sabe porque os gafanhotos não entram neste circulo?
O
silêncio foi explicativo…ninguém sabia a resposta.
---
O bispo da Guarda virá domingo à catedral celebrar uma missa para
pedir ajuda divina.
---
À catedral? E porque não aqui?
---
Estás a imaginar o bispo aqui? Numas ruinas? Nada sabe onde pára a
chave da igreja.
De
repente Manolo levantou-se do chão onde todos se haviam sentado …
levantou os braços para o céu … todos fizeram silêncio …
---
Rezai uma eucaristia aqui …
---
Que dizes?
---
La virgen pide que rezeis aqui…
---
Não blasfemes … homem …
---
El miercoles … el miercoles vendrá la señora …
---
Calem-me esse espanhol … ou o calarei eu com a minha espada.
De
novo João teve de acalmar a todos.
----
Calma, gente. Horas antes de que chegassem os gafanhotos ele tentou
avisar-me … no momento não o escutei … falemos com o padre Julio
, é meu amigo … ele virá celebrar uma missa aqui … não tenho
dúvidas …domingo …
---
Nooo --- gritou Manolo --- tiene que ser miercoles … el miercoles
vendrá la señora …
Após
dizer isto Manolo a correr abandonou o grupo.
Essa
mesma tarde João pisco falou com o padre Júlio. Ele não hesitou um
só momento em concordar com a missa, na seguinte quarta-feira.
A
noticia de que a Virgem apareceria correu por toda a cidade com uma
rapidez rara.
Quando
nessa quarta feira João chegou à igreja ficou de boca aberta …
centenas de pessoas tentavam concentrar-se o mais perto possivel do
já famoso circulo …
Alguns
dos granjeiros já aí se encontravam.
---
Que faz esta gente aqui?!!
---
Não sei … quando cheguei já aí estavam … dizem que alguns
dormiram a noite aqui …
---
Todos querem ver a Virgem.
---
João ficou muito calado … a coisa podia ficar séria.
As
horas foram passando…
Manolo
foi dos últimos a chegar.
---
Vendrá … tenei fé … vendrá ...
Mas
com o passar do tempo as pessoas começaram a apresentar sinais de
impaciência …
O
dia estava caindo … e, de noite, seria mais difícil voltar á
cidade.
De
repente … uma luz forte e brilhante ofuscou a todos.
---
ooooooohhhhhh!!!!
A
expressão foi quase uníssona ….
Todos
caíram de joelhos e inclinaram a cabeça, respeitosamente.
“-
Sei que necessitais ajuda … alguns de vós me pediram com fé …
vou ajudar-vos … em troca quero que, todos os anos, nesta data, se
reúnam aqui para rezar e que façam uma procissão á volta da
igreja … quero todos, povo, clero e nobres … todos os
responsáveis da cidade, assim como todos os que trabalham os mais
diferentes ofícios … a vossa fé será recompensada.”
Dito
isto a luz desapareceu e noite instalou-se. No entanto uma clara lua
cheia permitiu que todos voltassem à cidade sem problemas.
Quando
o sol nasceu, na manhã seguinte, já João Pisco estava na Quinta da
Feiteira.
Espanto
… havia chovido.
Junto
com Tiago caminhou por entre as culturas destruídas … dos
gafanhotos … nem sinal …
---
Um milagre, senhor João … um milagre da Virgem …
---
Parece que sim, Tiago … e se a Virgem cumpriu a sua parte,
compete-nos a nós cumprir a nossa, hoje mesmo pedirei uma audiência
ao governador da Cidade ...
O
governador o espanhol Ramon García já estava informado da situação.
O milagre havia-se estendido também por terras de Espanha e a
solução também os incluiu.
"---
Queda decretado que a partir de hoy, todos los años, dos semanas
despues de la Páscoa, se hará una romaria a la Virgen madre de
Dios, nuestra Señora de Miercoles, ya que fue en un miercoles que la
han visto. Yo mismo estaré delante en el paso que, como Ella há
pedido, se hará alrededor de la iglesia. Mandaré abrir las puertas
de la iglesia, pues que me parece que nadie tiene la llave.
Que
se firme esta mi decision a la fecha de hoy.
El
16 de Mayo del año del Señor de 1640."
Dramatização
de Jorge Peres
A
verdade:
São
várias as lendas e as histórias sobre a romaria de Nossa Senhora de
Mércoles.
Durante
vários anos estudei os diferentes documentos e visitei regularmente
a ermida em questão, tanto em épocas de romaria como na
tranquilidade que aí se vive o resto do ano.
Lembro-me
até de estar no recinto exterior da Igreja em directo numa emissão
de rádio da Rádio Juventude de Castelo Branco, onde trabalhei
durante tantos anos.
Esta
história é pura ficção, utilizando como base a lenda, que a mim
me parece mais plausível.
O
personagem João Pisco, jamais existiu, foi inventado numa clara
homenagem a minha avó materna, a quem chamavam Ana Pisca, porque,
realmente, comia pouco.
Josefa,
a mulher de João é uma homenagem a minha mãe, que assim se chama e
que viveu, claro que muitos anos depois desta história na “Quinta
da Feiteira”.
É
claro, que mesmo a ser verdadeira esta história, Ramon Garcia, por
certo também um nome inventado, jamais poderia cumprir o seu próprio
decreto já que em 1 de Dezembro desse mesmo ano de 1640 os portugueses conseguiriam a restauração da sua nacionalidade plena e
os espanhóis regressariam praticamente todos ao seu país.
Mas
a verdade é que a tradição aí está, todos os anos, com milhares
e milhares de pessoas participando na famosa procissão da virgem.
Aqui
fica o meu singelo contributo a uma das mais fortes romarias de todo
o país.
Jorge
Peres
blog de jorge peres e CARLOS CAMPOS
OUTROS BLOGS DO AUTOR :
EL OBSERVADOR DE ENIGMAS