sábado, 19 de enero de 2013

... SENHORA DA ORADA ...





 

     Maio … o sol encontrava-se no seu ponto mais elevado e algo raro, o calor apertava.

    Leonor voltava a casa pelo caminho do bosque. Eram quase horas de almoçar e já começava a sentir fome.

   O passo acelerado fazia sentir ainda mais o calor anormal nas primaveras da Cova da Beira.

      Ao longe escutavam-se os sinos de uma igreja.

   Pouco a pouco o som dos sinos foi substituido por outro, mais agradável … agua correndo …

   Olhou um pouco mais para o horizonte, como que a confirmar o caminho que levava … sorriu … era a velha fonte que não tinha secado totalmente … corria um fiozito de àgua … e ela tinha sede … muita sede …

 

     Conforme se aproxima verifica que a agua que cai de uma altura de cerca de metro e meio é pouca … mas daría para matar a sede.

   Numa atitude quase de atleta, Leonor … Nhôor … como lhe chamavam seus pais e irmãos, esticou-se um pouco para poder beber … os seus quase vinte anos permitiam-lhe essas poses artísticas, sem qualquer esforço.

       Fechou os olhos e contonuou a beber.

    De repente, algo, juntamente con a agua, entrou-lhe pela boca aberta … 



 


    Deu um passo atrás … sentiu que se engasgava … a primeira sensação foi de que iria vomitar …

       A verdade é que, passado poucos minutos, tudo voltou ao normal.

       Levou a sua mão direita à zona do estomago… estava tudo bem.

       Seguiu bebendo … ainda tinha sede.

       Uns minutos depois, já nem se lembrava do que acontecera.


 

       Ao longe vislumbrou o telhado da sua casa. Já faltava pouco.

       --- Nhôor … és tu?

      Sua mãe escutou o ladrar de Tigre, o fiel cão da familia que ladrava alegremente sentindo que chegava a sua dona .

      --- Sim, mãezinha … sou eu …

      --- Já estava preocupada, filha.

      --- Já estou aquí.

   --- Rápido. Temos que preparar a mesa. O teu pai deve estar a chegar para comer.

     --- Sim. Sim. É só mudar de roupa.

 

      José Simão era um homem bom. O seu coração tinha a nobreza e a dignidade de um autentico rei. Considerava-se a si mesmo como um homem sério e, muito embora, não tivesse o hábito de sorrir, adorava estar com a sua familia e considerava sagrados os poucos momentos em que a podia ter reunida … os momentos em que à mesa decorriam as refeições.

      Por isso, Leonor apressou-se a ajudar a sua mãe a preparar tudo.

     Quando, cerca de meia hora depois, chegou o patriarca, tudo estava preparado.



 


       Almoço e jantar faziam-se, normalmente, em silencio … era José quem alterava a ordem começando por falar em algum tema … depois … já todos seguiam o fio da conversação.

      Terminavam o prato de carne guizada cuando uma forte dor obrigou Leonor a soltar un grito.

          --- Filha! Que te passa? --- Amélia, sua mãe aproximou-se dela.

       --- Ufff!!!! Que dor me deu de repente … --- pressionava a barriga com as duas mãos.

        José parou de comer, observando a situação.

       Mas todo voltou ao normal e a refeição continuou.

    O dia passou com normalidade. Pela tarde, Leonor costumava ajudar a sua mãe nos trabalhos de lavoura.



 

      Eram tempos de sequia e tinham que regar.

  Enquanto a sua mãe se encarregava de abrir os sulcos que encaminhavam a àgua até aos sitios necessarios, ela ia tirando caldeiros cheios do poço.

     Dois dias depois, estavam tomando o pequeno almoço quando nova dor profunda a fez interromper o seu café.

    De novo Amélia correu para a filha. José limitou-se a observar …   calado …

    Aquele dia a coisa foi um pouco mais forte. A tal ponto que Leonor   teve que sair da mesa e correr até ao pátio para vomitar.

     Amélia e José olharam-se sem articular uma palavra.

 


      Nessa noite, quando todos já estavam deitados, José, mantinha-se sentado na cama.

      --- Que pensas, marido?

      --- Não sei … estou preocupado.

      --- Por Nhôoor?

      --- Sim …

      --- Não pensas que …

      --- Não sei …

    --- Anda, deita-te … é só um problemazinho de estomago … algo que   comeu e que não lhe assentou bem …

     --- Pode ser.

     Por fim deitou-se e acabou por adormecer.



 


      As crises de Leonor tornaram-se intermitentes … de quando em quando tinha que sair de casa e algumas veces acabava a vomitar …

      Amélia estava preocupada com ela … mas mais ainda com o que pensava o seu marido sobre a situação.

    Tambem se tornou mais observadora sobre tudo o que dizia respeito à sua filha.

      Uma tarde, Leonor teve uma crise mais forte que as anteriores …  Amélia quase que teve que arrastá-la até ao seu quarto.

     Ajudou-a a deitar-se … então deu-se conta de algo que iria mudar tudo na vida daquela familia … um volume anormal que a sua filha tinha no ventre.

      --- Leonor … que é isso?

    --- Não sei, mãe. Desde há uns dias que noto que a minha barriga esta aumentando.

     --- Leonor …

     --- Não mãe.

    --- Leonor … eu sei o que são essas coisas …

   --- E eu sei o que estás pensando … mas não … não me deitei com ninguem …

    --- Vou a ter que contar a teu pai … sabes bem …

    --- Por favor mãe … isto tem que passar …

    --- Tenho medo da reacção do teu pai … --- olhou os olhos de pavor da sua filha.

 


      Amélia imaginava como reacionaria su marido, mas tambem sabia perfeitamente que lo levaria muito peor se ela ocultase algo.

      Dois dias depois decidiu que havia chegado o momento.

      --- José … temos que conversar.

      --- Parece-me que sim.

     Sua voz soou como um trovão.

     --- Leonor esta grávida, não é verdade?

     --- Que dizes? --- tentou que a sua voz saísse firme … mas soou mais a um queixume …

   --- Sabes que não sou parvo. A sua barriga aumentou nas ultimas semanas. A conclusão é óbvia.

    --- Já falei com ela. Jurou-me que não havia estado com ninguém.

    --- Claro. Outro milagre da virgem.

    --- Eu acredito nela, José.

  --- Não me surpreende nada. A verdade é a verdade. Não conheço outro motivo que faça aumentar a barriga, que de enjoos à hora da comida … e todo isso …

   --- Que vamos fazer, José?

  --- Já que tu não soubeste tomar conta da tua filha … --- lançou um olhar acusatório à sua esposa --- falarei com ela.

    Essa noite Amélia não conseguiu dormir … o medo da conversa entre pai e filha fazia-a tremer.

 


Aos Domingos toda a familia, pai, mãe e os três filhos, vestiam os seus melhores fatos e caminhavam os cerca de quilómetro e meio que os separava da povoação para assistir á missa.

      No Domingo seguinte, José comunicou a toda a familia que fossem caminhando para a missa que ele e Leonor se reuniriam com eles mais tarde.

     Amélia ficou branca … olhou o seu marido … tentou dizer-lhe algo … mas ele indicou-lhe a porta …

      --- Já vos apanharemos.

     A Leonor termiam-lhe as pernas … já não podia esconder o vulto em que se transformara a sua barriga … ela própria não comprendia o que lhe estava pasando.

     Com a saída de todos o silencio invadiu toda a casa.

     --- Leonor!

     --- Sim, pai …

     --- Não tens nada que dizer-me?

     --- Não … pai … não posso explicar … não sei …

     --- Sabes que o teu pai não é fácil de enganar.

     --- Não pretendo engana-lo, meu pai … mas a verdade é que não sei o que me passa.

     --- Queres contar-me com quem estiveste.

     --- Meu pai … juro que nada me tocou …

   --- Sabes que não podes enganar-me … --- o tom da sua voz ia subindo --- nem a mim nem a ninguém!

    --- Meu pai … repito que mantenho a minha virtude intacta.

    José levantou-se tão rapidamente que ela pensou que lhe ia bater.

    --- Está tranquila. Jamais te levantei a mão e não o vou fazer hoje.

    Leonor respirou fundo …

    --- Vamos! Temos que sair.

 


       Caminharam lado a lado … mas ela sentiu que algo não estava bem …

       --- Meu pai … a igreja não fica por este caminho.

       --- Tu cala-te e continua andando.

     Não compreendia nada … aonde se dirigiam? Ela conhecia aquela vereda … levava ao monte …

     Aí tinham uma pequena cabana onde o seu pai guardava algumas alfaias e comida para o rebanho.

      Porque iriam para lá?!!!?

      Chegaram em cerca de meia hora. Amélia já estava exausta.

      --- Espera que já volto.

    O seu pai entrou na cabana e saíu aos poucos segundos com uma enorme corda na mão.

      --- E isso para que é, meu pai?

      --- Tu segue-me … já responderei às tuas perguntas.

   De novo voltaram a caminhar por um outro caminho de cabras.     Continuavam a subir o monte. Amélia já mal aguentava as pernas …






      --- Já não posso mais …

     --- Aguenta … segue caminhando … --- a sua voz era dura --- quando estiveste com esse homem aguentaste, não é verdade?

     --- Meu pai … já lhe jurei que …

   --- Cala-te … ao menos respeita a minha inteligencia … não quero voltar a ouvir a tua voz … para teu bem … cala-te

    Não se deu conta de quanto haviam caminhado … estavam já no cimo do monte … aí havia algum vento … de resto … silencio absoluto …

      José apontou-lhe uma grossa arvore.

      --- Senta-te e encosta-te a essa arvore.

      --- Pai! Por favor …

      --- SENTA-TE E ENCOSTA-TE A ESSA ARVORE!!!

   Temerosa obedeceu. Então o seu pai começou a passar a grossa corda que havia trazido.

      Em poucos minutos estava completamente imobilizada.

 


       --- O castigo não te o darei eu … deixo o teu destino nas mãos e Deus e dos lobos que vivem por aquí.

      Sem querer escutar mais a sua filha José virou-lhe as costas e começou a descer o monte.

        Doia-lhe o que acabava de fazer … mas preferia perder uma filha a manchar a dignidade de toda uma familia.

        Cada grito de Leonor que escutava … cada vez mais longe … eram farpas que se lhe espetavam nos ombros.

        Atalhando chegou à igreja.

        Amélia estava ajoelhada rezando e não o sentiu chegar.

  Quando terminou a eucaristia reuniram-se todos junto ao campanário como era costume todos os Domingos.



 


       Aflita, Amélia olhava em todas as direccões procurando Leonor … mas não a encontrou.

      Os pequenos perguntaram a sua mãe pela irmã … mas não soube que dizer …

      Caminhando para casa os jovenzinhos correram diante deles … já conheciam o caminho … Amélia aproveitou para tocar o braço do marido que seguia silencioso.

       --- Onde esta a nossa filha?

       --- Já não temos filha.

      Foi como se estoira-se uma bomba.

      --- Que dizes? Onde está? --- a sua voz estava quase histérica --- Que lhe fizeste?

      José parou e enfrentou-a com a cara marcada pelo desgosto.

      --- Não lhe toquei, se és isso que estás pensando … jamais toquei nos nossos filhos … nem a ti … 

     Era verdade. Mas isso não lhe dizia donde estava Leonor.

   Ao chegar a casa, Amélia correu todos os cantos pensando que estaria de castigo … mas não a encontrou.

      Então enfrentou o marido e sem medo olhou-o … olhos nos olhos …

--- Enquanto eu não souber onde está a minha filha não saírei do quarto …

    José surpreendeu-se com a reacção e a firmeza da voz da sua esposa. Ficou olhando enquanto ela subia ao andar superior donde ficava o quarto do casal.

 


      Entretanto, em pleno monte, Leonor já não tinha mais lágrimas. Já nem sentia os braços, garrotados pela corda …

    A noite invadía pouco a pouco a zona onde se encontrava. De quando em quando escutava algum som e todo o seu corpo estremecia.

     Sabia que havia lobos por aí … desde pequena que o seu pai contava historias de lobos … e sim … tinha medo … muito medo …

       Mal se deu conta estava tudo escuro … sentiu necessidade de rezar …  imaginou que tinha um terço nas suas mãos … e rezou … mas aos poucos… o cansaço foi ganhando … adormeceu …


 


    Despertou com o sol, filtrado pelos ramos das arvores batendo-lhe na cara.

     Dormira algumas horas … dos lobos … nem sinal …

    Começou a compreender que ninguem a salvaria daquela situação … voltou a rezar … era devota da Virgem Maria … já em outras ocasiões tinha recorrido aos seus favores, e a verdade é que quase sempre sentiu que a Virgem a escutara.

      --- Senhora minha … mãe divina … ajuda-me … sabes que não minto … sabes que sou virgem … por favor …

       Esta oração saiu vezes sem conta de seus lábios.

      Mas o dia passou e nada mudou na sua situação. Estava cansada … tinha muita fome … muita sede … seguia rezando …



 


        De novo regressou a noite. De novo voltaram os medos … do meio do monte … como que a dar razão aos seus mais profundos receios, um uivar gelado fez-se ouvir … os lobos haviam dado pela sua situação.

       Redobrou as suas orações à Virgem das suas devoções …

     Escutava os ruidos que os lobos faziam ao aproximar-se … sentia que o seu fim estava próximo …


 


     De repente todo aquele espaço se inundou de luz … não compreendia … se estava em plena noite …

          A luz como que deslizava em direcção à arvore onde estava … no meio da luz vislumbrou a figura de uma mulher que ela bem conhecia …

      --- Senhora … Mãe de Deus … ajudai-me … --- respeitosamente fechou os olhos.

         Então escutou uma voz doce …

      “ --- Tranquila … vou ajudar-te … quero que baixes a tua casa … pedirás a tua mãe que ponha uma panela ao lume cheia de leite … chama o teu pai para que esteja presente … quando o leite começar a estar quente e antes que comece a ferver inclina-te sobre a panela e respira os vapores do leite ...”

      --- Senhora minha … faria tudo o que me peças … mas estou amarrada e não posso sair daqui …

          “--- Bem sei … tem fé em mim … tudo se solucionará … passe o que passar … não tenhas medo. “

 


        Leonor abriu os olhos … havia voltado a escuridão. Teria sonhado?

        Um som vindo do bosque fê-la cair na realidade. Estava amarrada e os lobos estavam aí.

     Naquela noite a Lua esta cheia … podia ver perfeitamente as formas dos felinos aproximando-se.

     Recordou as palavras da Virgem … “ passe o que passar … não tenhas medo ...”

      Respirou fundo … agora podia vê-los de bem perto … sentiu o bafo quente de um deles nas suas mãos, por detras da arvore donde estava amarrada … não podia ter medo … não iria ter medo …

       O cansaço voltou a vence-la … de novo adormeceu …

 


       O dia veio envolvê-la … a primeira coisa que deu conta é que voltara a sentir as mãos … forçou um pouco … estava livre …

           Como podia ser?!

     Com esforço levantou-se … tinha as pernas entorpecidas e sentia-se débil.

      Começou a lenta caminhada até a sua casa.

      Desde domingo que Amélia não saía do quarto, tal como prometera ao seu marido.

      Muito a custo conseguiu chegar a casa. Sentou-se no salão …

--- Mãeee …

     A Amélia pareceu-lhe uma alucinação … pareceu-lhe escutar a voz de sua filha …

      --- Mãeeeeeee …

     Agora não tinha dúvidas … era Leonor.

    Alertados pela chamada da sua filha chegaram ao mesmo tempo à  sala, Amélia y José.

    --- Que fazes aquí? Como chegaste até aquí? --- José tentava comprender.





       --- Meu pai … falei com a Virgem.

       --- NO BLASFEMES … LEONOR …

       --- José! Já basta! --- a voz de Amélia era forte. --- Quero ouvir o que a nossa filha tem para nos dizer.

     José ficou em silencio. A verdade é que o regresso de Leonor havia inundado o seu coração de alegria … no entanto a sua responsabilidade de chefe de familia não permita que o demonstrasse …

      Um pouco a custo, Leonor contou o seu encontro no monte e as instruções que recebera.

 

 

 


      De imediato Amélia se levantou e começou a preparar a panela com o leite.

    José manteve-se em silencio. Desejava que todo aquilo fosse verdade … mas ao ver a barriga de Leonor, maior que quando a deixara no monte estava muito descrente.

         Em pouco tempo o leite estava quente.

     Tal como dissera a Virgem, Leonor inclinou-se para respirar os vapores … 

 

 


 

       Amélia estava de joelhos … José conhecia-a bem … sabia que estava rezando … ajoelhou tambem e passou o braço pelos ombros da sua esposa.

      De repente, Leonor começou com convulções … como se fosse vomitar.

          Pai e mãe colocaram-se um de cada lado ajudando a Leonor …

          --- Céus … que é isso?

        José olhava alarmado algo que começava a sair da boca de Leonor …

        --- Uma serpente … meu Deus … --- Amélia estava atónita.

      Pouco a pouco uma grande serpente foi saindo de dentro de Leonor … por fim caiu totalmente dentro da panela no momento em que o leite começava a ferver …





 

     Um som dilacerante ecoou pela cozinha enquanto a serpente morria cozida no leite.

         Leonor desmaiara. José pegou nela em braços e levou-a para o seu quarto.

         --- Amélia, prepara a melhor comida que tenhas … a nossa filha voltou a casa.

         Dizendo isto saiu pela porta da rua e correu ao sitio donde, dias antes deixara a Leonor amarrada e sem esperança de voltar a ve-la.

       Facilmente encontrou a arvore … no chão estavam os restos da grossa corda … notavam-se os mordiscos de afiados dentes …

         José ajoelhou, uniu as duas mãos … e rezou …

      --- Virgem Maria … santa mãe de Deus … Obrigado por devolver-me a minha filha muito amada … te prometo que, este mesmo mês começarei a construir, neste mesmo sitio uma igreja para que eu, e os meus descendentes, possam adorar-te para todo o sempre.




 

       Esta é a lenda que se conta há muitas gerações. Segundo consta isto passou-se próximo de S. Vicente da Beira, um monte conhecido como Monte do Couto.

        Conta-se que agradecido pelo milagre com a sua filha, aquele pai construiu uma igreja donde hoje, todos os anos, se faz uma romaria no quarto Domingo de Maio … é a capela da Nossa Senhora da Orada.

       A história chega-nos pela mão de José Carlos Duarte Moura, no livro :” Contos, Mitos e Lendas da Beira” publicado 1996.

 

                               Dramatização de jorge peres.


contacto:
                         jormarso@hotmail.es
 

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